Entre o óbvio e o obvio

Robério Canto

Escrevivendo

No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

terça-feira, 16 de abril de 2024

Não era o único a buscar nas garrafas da branquinha inspiração para abrilhantar seu pronunciamento

Na simpática cidade de Santa Cecília (que eu não conheço, mas por isso mesmo merece de mim pelo menos o título de simpática), um vereador teve atuação especialmente destacada em sessão do legislativo local. Alegando que nunca se pronunciava nas reuniões, insistiu no seu direito de, pelo menos uma vez, falar como bem lhe aprouvesse, ainda que lhe aprouvesse falar embriagado, como era justamente o caso naquele momento.   Não sei se esse senhor é um bom representante do povo, mas não se pode negar que é um homem sincero. O nobre edil começou seu discurso informando aos presentes que havia “tomado umas cachaças” antes de se dirigir à sessão do dia e, mais, afirmou que todos os colegas faziam o mesmo, isto é: degustavam umas e outras antes de vir trabalhar em favor do povo santa-ceciliense. A se acreditar em sua etílica sinceridade, nenhum dos presentes podia lhe cassar as palavras e nem havia motivo para tanto. Afinal, não era o único a buscar nas garrafas da branquinha inspiração para abrilhantar seu pronunciamento.

No pequeno plenário, os protestos foram poucos, não sei se porque a acusação tinha fundamento, ou se porque reconheciam que o orador falava com a autoridade que seus eleitores lhe conferiram, embora com voz arrastada e pernas oscilantes. Contudo, a certa altura dos acontecimentos, o presidente da Casa julgou por bem advertir o colega de que este devia se ater ao assunto em pauta, ao que o orador retrucou, ébrio de autoridade: “Posso falar? Posso falar? Eu nunca falo nessa... de Câmara. Hoje vou falar”. E seguiu elogiando a prefeita, que, segundo sua sóbria avaliação, “é a melhor que essa cidade já teve!” Por fim, entre risos de uns e constrangimento de outros, o presidente deliberou encerrar a sessão, sob protestos do parlamentar, que certamente não havia elogiado suficientemente a chefe do governo municipal.

Não sei se o ditado latino “in vino veritas” se aplica à estimada aguardente nacional e se a prefeita se sentiu valorizada ou envergonhada com a entusiástica defesa do seu correligionário. É improvável que “in cachaça veritas”, o mais certo é que ela seja a causa de muita tristeza. Mas às vezes os bêbados protagonizam cenas de comédia pastelão, como se viu nessa histórica sessão legislativa.

Essa notícia me fez lembrar de uma anedota que há alguns anos se contava sobre um dos mais conhecidos políticos de nossa cidade. Eleito deputado estadual, comparecia regularmente à assembleia, em cujas cadeiras aproveitava para descansar da exaustiva viagem à capital do estado. Como na época não havia celular, contentava-se em passar os olhos pelo jornal do dia e depois tirava uma soneca, embalado pela voz dos colegas que peroravam na tribuna. Não incomodava ninguém, não perturbava o sono dos demais deputados, nem prolongava inutilmente a sessão. Eis que um dia, para espanto geral, nosso representante naquela Casa levanta a mão e pede a palavra. Concentração geral. “Finalmente vamos ouvi-lo!”  Com a solenidade que as circunstâncias exigiam, fez o seu primeiro pronunciamento: “Senhor Presidente, peço a Vossa Excelência que mande fechar a janela em frente, pois o vento está me incomodando”.

Também me lembrei de uma história já contada aqui, mas que vem a calhar. Na Câmara de uma cidade mineira, um vereador pronunciou a palavra “obVIo”. Um colega, provavelmente de partido adversário, não deixou passar: “O correto é ÓBvio, nobre companheiro”. Ora, por orgulho ou ignorância, o admoestado não se curvou e insistiu no “obVIo”. Instalou-se o bate-boca, cada um dos debatedores mais doutos em assuntos de língua portuguesa. Sabemos que essas discussões sobre os magnos assuntos de interesse do povo costumam terminar em tapa. Diante do temporal que ameaçava desabar no plenário, o presidente pôs o assunto em votação. Feita a apuração, “obVIo” ganhou por larga maioria de votos!

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No estilo “caminhando contra o vento”, o professor Robério Canto vai “vivendo e Escrevivendo” causos cotidianos, com uma generosa pitada de bom humor. Membro da Academia Friburguense de Letras, imortal desde criancinha.

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