Rua Juruá, 94, Olaria, Nova Friburgo

Wanderson Nogueira

Palavreando

Aos sábados, no Caderno Z, o jornalista Wanderson Nogueira explora a sua verve literária na coluna "Palavreando", onde fala de sentimentos e analisa o espírito e o comportamento humano.

sábado, 20 de abril de 2024

Os olhos de um menino enxergam mais do que os de um adulto. Talvez, pela inocência de quem está experimentando o mundo, desvendando-o sem preconceitos. Possivelmente, pela ausência de circunstâncias avessas de quem pouco sabe diferir o bom do ruim. A ingenuidade, no entanto, não permite qualquer confusão na diferença entre o bem e o mal. Todos nós nascemos do bem! O dia-a-dia, pode ser, faça alguém se tornar mal.

Para a criança, o mundo é um lugar bem pequeno que cabe no seu campo de visão. É um quintal, uma calçada, uma rua, uma cidade. Meu quintal: Rua Juruá, no número 94. Minha calçada: uma floresta com cipós e trilhas. Minha cidade: Nova Friburgo.

Até hoje não sei se a mágica Rua Juruá é em Olaria ou no Alto de Olaria. Aliás, hoje sei que dão o nome de Loteamento Nosso Sonho. Naquela época, era o meu sonho que até hoje cheira a biscoito amanteigado. Cheiro de infância causa afeição na gente que nos transporta para um imaginário tão particular e de difícil descrição.

Meu terreiro, próximo ao Terreirão de quem preferia desobedecer às ordens dos pais e morar mais na rua do que em casa. Em casa, tinha o fantasma da mulher de branco. Para me proteger, quando estava sozinho em casa ou mesmo com meu irmão mais velho, eu me escondia na rua. As luzes dos postes iam acendendo ao escurecer e só entrava em casa quando minha mãe ou meu pai chegavam do trabalho.

Eu era muito pequeno, quando passei pela primeira mudança de casa na minha vida. Devia ter três, quatro anos, quando me despedi da vizinha de porta, Dona Antônia, no Perissê. Uma adorável senhora que peguei como avó emprestada. Ela cuidava de mim, enquanto meus pais iam para o trabalho. Chorava muito por ter que sair daquele aconchegante bairro em que fui atropelado por um Fusca azul. Foi a única vez que quebrei algo em mim: meu braço esquerdo. Aliás, são os dois primeiros choros que me lembro: quando quebrei o braço e quando deixei a Dona Antônia que viria a falecer alguns meses depois da minha mudança Perissê para Olaria. 

Era assustador, ainda que nutria certa ansiedade para descobrir o que me aguardava. Chegar naquele bairro novo, numa rua ainda de barro, em que de um lado tinham casas e do outro uma floresta. Não podia imaginar como seria tão feliz. A casa era muito maior, ainda que fosse de chapisco. Tinha uma horta gigante. O acesso ainda era difícil, com uma escada esculpida na terra sem muita simetria, própria de uma rua que ainda não era pavimentada. O que durou pouco. Logo depois de nossa mudança, a rua foi calçada e aproveitou-se para adequar o acesso à casa. 

A floresta ao lado era um parque de diversão. Próprio de crianças desprovidas de muitos brinquedos. Uma vantagem. Nascia ali minha imaginação fértil que criava mundos mágicos, cheios de personagens. Nunca precisei muito de brinquedos, na falta deles - a minha criatividade tratava de inventá-los. Se não tinha a floresta, tinha a horta. Se tinha floresta e horta, havia também os vizinhos. Todos mais velhos do que eu, o que me obrigava a descobrir cedo a minha alma antiga. Se não tinha ninguém, havia a laje, onde eu super-herói combatia os vilões com espada de bambu e capa de toalha de banho. 

Ir para a Escola Batista era festa. No caminho, caçava figurinhas do chiclete Ping-Pong no chão. Completava álbuns e álbuns assim. Catar latas pelo bairro - na época mais de óleo de soja do que de refrigerante - pode até parecer trabalho, mas para mim era como o dia de São Cosme e Damião. Latas e mais latas no saco que eu e meu irmão André vendíamos para um ferro-velho da rua de baixo. Juntava o dinheiro, gastava quase todo na bomboniére da Rua São Roque ou na venda do Seu Juarez da rua acima da Juruá. Comprava 100 gramas de belisque palitinho, muitos chicletes com figurinha, biscoitos e doces. Quando tinha um pouco mais, juntava parte com o meu irmão e até dava para comprar uma bijuteria para mamãe ou uma boneca barata para a irmã que acabara de nascer.    

Quando meus primos ou irmãos vinham, a Rua Juruá se tornava ainda mais mágica, tendo como testemunha a Pedra do Imperador, única montanha que pode ser vista de qualquer ponto da cidade, até mesmo do Loteamento Floresta, bairro que me abrigou após a minha infância em Olaria. Mas essa é outra história dentro do mesmo lugar: Nova Friburgo.

E a gente vai crescendo. Histórias e compromissos entram nos nossos compromissos e histórias. A memória vai se consumando sem jamais consumir as lembranças que nos fazem sentir saudades e nostalgias. Saudades de cheiros como o de biscoito amanteigado ou da comida de minha mãe. Saudades de sons como o da pedreira da Catarina que anunciava ser onze horas e cinco da tarde ou da floresta quando o vento fazia carinho em suas árvores. Saudades de pessoas como a Dona Laura que me dava salgadinho belisque, o Ricardo que pulava o muro da casa dele para ir na minha ou do meu pai que chegava de surpresa em casa e já colocava a mão pesada para ver se tínhamos ficado vendo televisão sem permissão.

Saudades de contatos como o da vizinha que vendia sacolé ou com a moça que costurava as roupas da família ou dos três irmãos que eram vizinhos e que apesar de lembrar deles não consigo recordar de seus nomes. Mas independente disso, todos estão resguardados no mesmo lugar, onde o número 94 continua lá: Rua Juruá, em Olaria.  

Uma rua de histórias, fascínios e dramas. Uma rua pavimentada por poesia numa cidade que é a própria poesia em si. A Juruá, Olaria, são apenas versos e estrofes de uma cidade cujo poema está sempre inacabado. Cabe a cada um de nós acrescentar em palavras, sorrisos, choros, sonhos e memórias o que Nova Friburgo causa na gente e a gente transforma nela. E o melhor: sempre estaremos por terminar. Há de se continuar!

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