A longa luta das mulheres pelo direito à educação e ao voto

O tempo em que a vida das mulheres estava circunscrita à esfera doméstica, como esposas e mães
sexta-feira, 03 de março de 2023
por Jornal A Voz da Serra
Nísia Floresta
Nísia Floresta

Estudar, trabalhar, votar, divorciar-se. As brasileiras do começo do século 19 não tinham nenhum desses direitos. Até 1830, a lei permitia que os maridos castigassem fisicamente as esposas, uma herança das Ordenações Filipinas, um conjunto de leis de origem espanhola adotada por Portugal e implantada no Brasil colônia.

Até 1962, as mulheres casadas precisavam de autorização formal dos maridos para trabalhar — o Código Civil de 1916 via a mulher como incapaz para realizar certas atividades.

Nas escolas, até 1854, as meninas aprendiam corte, costura e outras "prendas domésticas", enquanto aos meninos se ensinava ciências, geometria e operações mais avançadas. Depois que o currículo foi unificado no ensino básico, ainda foram necessárias várias décadas até que as mulheres tivessem acesso mais amplo às universidades, algo que só ocorreu depois de 1930.

O direito de votar veio em 1932 como mais um capítulo de uma história longa, que vai muito além do acesso às urnas. 

“Nísia Floresta” e o acesso à educação

Uma das precursoras dos movimentos pela conquista dos direitos das mulheres no Brasil viveu um século antes da promulgação do voto feminino. Dionísia de Faria Rocha, que se tornaria conhecida pelo pseudônimo Nísia Floresta Brasileira Augusta, nasceu no interior do Rio Grande do Norte, em 1810.

Numa época em que a vida das mulheres estava circunscrita à esfera doméstica, como esposas e mães, Nísia foi um ponto fora da curva. Do Rio Grande do Norte para Pernambuco, para o Rio Grande do Sul, para o Rio de Janeiro.

Viveu anos na Europa, onde transitava por círculos de intelectuais com nomes como Almeida Garret, Alexandre Herculano, Alexandre Dumas, Victor Hugo e Amandine Dupin — que se apresentava como George Sand, pseudônimo masculino que usava para assinar seus livros, algo comum naquela época.

Teve 15 livros publicados e escreveu uma tradução livre da obra Vindication of the Rights of Woman, da escritora inglesa Mary Wollstonecraft, intitulada Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens. Ainda que não repetisse o discurso de rompimento da intelectual inglesa, Nísia defendia que as mulheres tivessem acesso à mesma educação que os homens.

Foi professora e fundou, em 1838, no Rio de Janeiro, um colégio para meninas com um currículo que ia bem além das aulas de corte, costura e boas maneiras previstas na lei. O programa do Colégio Augusto incluía latim, francês, italiano e inglês — tanto gramática quanto literatura —, geografia e história.

O fato de dar às meninas instrução bem mais ampla que o comum da época fez da escola alvo de duras críticas dos jornais cariocas durante os 18 anos em que esteve em funcionamento.

Na edição de 2 de janeiro de 1847 do jornal O Mercantil, um comentário sobre os exames finais em que várias alunas haviam sido premiadas com distinção alfinetava: "trabalhos de língua não faltaram; os de agulha ficaram no escuro. Os maridos precisam de mulher que trabalhe mais e fale menos". 

Catalizador das transformações

Com a vinda da Corte para o Brasil, em 1808, o ensino começa a se difundir no país, especialmente entre as famílias ricas, que costumavam contratar professoras estrangeiras (francesas e portuguesas, principalmente) para que ensinassem aos filhos dentro de casa.

A primeira grande legislação sobre educação só é promulgada depois da independência, em 1827, durante o período do Primeiro Império. É ele que estabelece que o ensino para meninos e meninas deveria ser diferenciado.

Em matemática, por exemplo, os cursos para meninas só deveriam cobrir as quatro operações básicas — somar, subtrair, multiplicar e dividir, enquanto aqueles para meninos incluíam geometria, frações, proporções, números decimais. A lei só unificaria os currículos quase 30 anos depois, em 1854.

A educação, entretanto, é um grande catalisador das transformações que aconteceriam nas décadas seguintes — e, por isso, o ativismo de Nísia e de outras mulheres nesse sentido é considerado fundamental para os avanços que vieram depois. (Fonte: //www.bbc.com/portuguese/brasil)

Elas defenderam os indígenas, fundaram partido, sindicato e movimento feminista, e lutaram pelo direito ao voto

Leolinda Daltro e o 1º Partido Feminino

Uma mulher questionadora, assim foi a baiana Leolinda de Figueiredo Daltro, professora, nascida em 1859, cujo principal foco no âmbito do magistério eram os indígenas. Leolinda defendia que eles fossem incorporados à sociedade brasileira por meio do ensino laico, desligado da igreja — em uma época em que praticamente todas as iniciativas nesse sentido eram dominadas por agremiações católicas, como os jesuítas.

Já separada do segundo marido e com 5 filhos, os quais sustentava com seu salário, a forma como levava a vida afrontava os costumes da época. Foi derrubando as barreiras colocadas no caminho das mulheres pelo simples fato de serem mulheres que Leolinda se voltou para as questões de gênero.

Morando no Rio, em 1910 ela funda o Partido Republicano Feminino (PRF), o primeiro com esse perfil montado no Brasil — e não formalmente reconhecido como partido, já que as mulheres não tinham direito ao voto, ainda (uma das demandas do PRF).

Ela e as mulheres do partido começaram a frequentar as sessões parlamentares, vaiando ou aplaudindo, e com coragem exigindo direitos políticos. Sem medo de confrontos, Leolinda era chamada pelos desafetos e imprensa, de "Pankhurst brasileira", uma referência a Emmeline Pankhurst, uma das fundadoras do movimento sufragista na Inglaterra.

Bertha Lutz, feminista e pelo voto

Já a bióloga Bertha Lutz era avessa ao conflito direto, preferia os pronunciamentos públicos, cartas à imprensa e a busca de apoio de lideranças masculinas. 

Nascida em 1894, Bertha entra em cena no momento em que o movimento feminista da América Latina se internacionalizava e já estava integrado às redes europeias. Ela mesma tinha vivido em Paris, onde se formou na Universidade Sorbonne e, em 1918, voltou ao Brasil. 

No Rio, começa a trabalhar com o pai, o médico Adolfo Lutz, na Fiocruz, mas com a ciência dominada por homens, teve dificuldade para se estabelecer como cientista — um dos fatores que a impeliu para a atividade política.

Em 1919 fundou a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher (Leim), que tinha entre seus objetivos a aprovação do sufrágio feminino. Em 1922 participa de um encontro feminista em Baltimore (EUA), a Conferência Pan-Americana de Mulheres. Naquele mesmo ano, a Leim vira a Federação Brasileira para o Progresso Feminino (FBPF) e organiza o 1º Congresso Internacional Feminista do Brasil.

Em 1930, um golpe de Estado coloca Getúlio Vargas no poder e no ano seguinte, as representantes da federação conseguem uma audiência com o presidente: em 1932, o voto feminino consta no decreto do novo Código Eleitoral.

Não foi suficiente para torná-lo popular. Tanto para mulheres quanto para homens, o voto continuou restrito aos cidadãos alfabetizados, regra que, na prática, excluía boa parte da população pobre.

Almerinda Gama, sindicalista combativa

A datilógrafa e escritora paraense Almerinda Farias Gama foi uma das filiadas da FBPF, mas sua trajetória foi bem diferente da de Bertha. "Ela veio de uma família com muitas mulheres, que sustentavam a casa, com tia médica influente em Belém. Portanto, tinha bons exemplos de mulheres fortes", diz a pesquisadora da UnB, Teresa Cristina Marques.

Formada em datilografia, ao procurar emprego Almerinda percebe que repetidamente lhe oferecem salários inferiores aos pagos aos homens. Por melhores condições, parte para o Rio, onde morava seu irmão, conhece o movimento feminista e se aproxima da FBPF, atraída por pautas como a de igualdade salarial.

Entre as funções que desempenhou, era o “elo" entre a federação e a imprensa carioca. "Como escrevia em jornais paraenses, estava acostumada a lidar com a imprensa". Almerinda entrava nas redações, conversava com os jornalistas e os convencia a publicar "notinhas" sobre a entidade.

Em paralelo, teve uma trajetória importante como sindicalista. Ajudou a fundar e foi a primeira dirigente do Sindicato dos Datilógrafos e Taquígrafos do Distrito Federal. Como líder sindical, foi a única mulher a votar como delegada na Assembleia Nacional Constituinte de 1933.

Em 1934 se afastou da federação, por achar que a entidade vinha perdendo seu caráter combativo, como relata Patrícia Tenório, em sua dissertação “A Vida na Ponta dos Dedos: A trajetória de Vida de Almerinda Farias Gama”.

Almerinda passou a atuar cada vez mais nos sindicatos e em um núcleo do movimento negro em Madureira. Aos 50 anos conseguiu ter sua própria casa, no Méier — um espaço que acolhia migrantes e quem precisasse de "pouso" no Rio.

"Muita gente passou pela casa dela, que tinha as portas abertas", destaca Marques. "A Bertha fazia política pelos canais tradicionais, escrevia, se manifestava, pedia audiência. A dona Almerinda fazia política com suas escolhas pessoais."

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