Criança não deveria só estudar e brincar?

Trabalho infantil, gravidez precoce e crianças fora da escola: a dura realidade de muitas crianças e adolescentes do município
domingo, 26 de outubro de 2014
por Jornal A Voz da Serra
Criança não deveria só estudar e brincar?
Criança não deveria só estudar e brincar?

Lucas Vieira e Karine Knust 

No último dia 12 comemorou-se o Dia das Crianças, data criada no Brasil, em 1924 pelo deputado federal Galdino do Valle Filho, político de destaque na história de Nova Friburgo. Porém, nem todos conseguem aproveitar a data como deveria ser. Muitos menores de idade são obrigados a trabalhar desde cedo, em condições apropriadas ou não, ou têm famílias desestruturadas e problemas em casa, privando-os deste e de vários outros dias especiais.

Segundo Ricardo Barcelos, coordenador administrativo do Conselho Tutelar, são muitas as crianças e adolescentes em situação vulnerável em Nova Friburgo. "A gente tem casos enormes, desde estupros até violência contra a criança. Mas o número mais alarmante é o das Ficais, com crianças que abandonam a escola”.

O coordenador comenta que a Ficai (Ficha de Comunicação do Aluno Infrequente) tem o objetivo de estabelecer o controle do abandono escolar de crianças e adolescentes e que, em Nova Friburgo, este número tem sido muito alto, gerando uma demanda volumosa para o Conselho Tutelar. "Nós tivemos 105 Ficais no mês de setembro. Essa quantidade alta nos deixa sobrecarregados, pois, além do documento, também é nosso dever achar o endereço, visitar a família e convocá-los a vir aqui.” Diagnóstico semelhante possui a pedagoga da instituição, Andréa Machado de Oliveira: "Nós trabalhamos com as redes particular e pública, então a demanda é alta. Mas a gente tem obtido sucesso nos casos que conseguimos atender”. O aumento na ocorrência de abandono escolar na rede particular de ensino, aliás, é um dado que desperta a atenção do coordenador do Conselho Tutelar. "Antes era uma característica muito maior da rede pública”, diz ele.

A pedagoga Andréa Machado explica como é realizado o procedimento por parte do Conselho Tutelar e da rede de atendimento na situação de um aluno faltoso. "Depois que a escola envia a ficha, a gente entra em contato com a família para saber o motivo de o aluno estar faltando e, se houver necessidade, a gente encaminha para um psicólogo ou conselheiro. O nosso principal objetivo é inserir novamente a criança no ambiente educacional — e para isso é preciso da parceria com o conselho escolar, a família e o colégio”, salienta. 

O papel da família como base para a educação dos jovens foi apontado pelos dois entrevistados. Ambos defenderam a ideia de que a desestruturação da mesma é prejudicial para a formação do jovem. "Essa ausência na realidade escolar da criança é um problema. O principal motivo de elas saírem é a falta de motivação para estudar. Falta uma referência dentro de casa, um embasamento da importância do que é a escola”.


Gravidez precoce: a menina cada vez mais distante da escola

A questão das crianças fora da escola não é o único problema enfrentado pelos menores de Nova Friburgo. A gravidez precoce é outro agravante que muito preocupa o Conselho Tutelar. Segundo Andréa Machado de Oliveira, há casos na cidade de adolescentes grávidas com 13, 14 anos, e que acabam, em decorrência disso, se afastando da escola. "A gente tenta fazer um trabalho árduo, para que mesmo assim ela continue estudando. Só que é muito complicado, porque se antes ela já não queria estudar, agora que está grávida é que fica mais difícil ainda, pois, geralmente, ela vai ser vista de maneira diferente no ambiente escolar. Quando acontece, a jovem passa pela psicóloga, que faz o acompanhamento, mas é preciso também auxiliar a família, que muitas vezes está desestruturada”, ressalta Andréa.


Trabalho infantil: só não vê quem não quer

De acordo com dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em setembro deste ano, o Brasil registrou queda de 12,3% no número de trabalhadores entre 5 e 17 anos de idade no período de 2012 a 2013. Segundo a pesquisa, apesar da saída de 438 mil crianças e adolescentes destas condições, ainda restam 3,1 milhões de trabalhadores nesta faixa etária — a maioria do sexo masculino. Também, de acordo com os dados divulgados, os adolescentes de 14 a 17 anos de idade estão em maior número — 2,6 milhões — e as crianças de 5 a 13 anos de idade, cerca de 486 mil, estão concentrados nas atividades agrícolas (63,8%).

Mas como definir o que pode ser considerado trabalho infantil? Essa parece ser uma pergunta de fácil resposta, mas não é. Atores, atrizes e modelos mirins, por exemplo, dificilmente são considerados trabalhadores com o mesmo peso que a sociedade vê o trabalho de menores nas lavouras e ruas das cidades. Até porque, atualmente, as instituições sérias que lidam com essas pequenas celebridades têm se preocupado em realizar acompanhamento psicológico e físico, preservando a vida escolar e social dos menores, propiciando a eles condições de real aprendizagem, tanto da profissão quanto da grade curricular de ensino. E é preciso admitir que o fato é que determinados ofícios exigem um esforço físico tão grande que realmente causam mais espanto, merecem uma atenção redobrada e, por isso, há décadas são temas de reportagens vinculadas na mídia — como em casos de crianças trabalhando em carvoarias ou plantações de cana, por exemplo. 

Em Nova Friburgo, uma situação em particular tem chamado atenção de parte da população ao longo dos anos. Há alguns dias, por exemplo, a redação de A VOZ DA SERRA recebeu novamente denúncias sobre o trabalho de crianças num dos pontos turísticos mais famosos do município, a Praça do Suspiro. Transitando pelo meio das ruas que circundam o local, meninos — que ainda nem chegaram à adolescência — são condutores de cavalos utilizados como atração e transporte de outras crianças, que surpreendentemente, muitas vezes, montam nos animais ou passeiam nas charretes juntamente com seus responsáveis. Já os pequenos "motoristas”, além de estarem por horas expostos ao tempo, geralmente descalços e sem camisa, trafegam no meio da rua e na contramão em vias altamente movimentadas e têm uma responsabilidade semelhante a de adultos. 

Evandro Arcanjo, coordenador do Conselho Tutelar em Nova Friburgo, afirma que o caso já foi analisado e está sendo acompanhado pelo Ministério Público do Trabalho, da Infância e Juventude do Estado e pelo Conselho Tutelar, mas existem alguns fatores que têm dificultado a solução do problema. "Já recebemos algumas denúncias e já fizemos quatro visitas ao local. Só que quando chegamos ao ponto turístico com o carro do Conselho ou mesmo a pé, eles saem correndo. Também observamos que existe uma resistência muito grande dos proprietários dos cavalos, que facilitam e aliciam os meninos a trabalharem como condutores. E, por conta dessa relutância, não conseguimos descobrir quem são as crianças e os proprietários também não fornecem informações”.

Ainda segundo o Conselheiro, apesar da proibição do trabalho infantil estar amparada pela lei federal 8.069 capítulo 5, a fiscalização ainda é falha: "Infelizmente não temos autonomia para punir os responsáveis por qualquer situação de trabalho infantil. Mas o fato é que essa situação só será revertida quando esses proprietários de cavalos forem penalizados. Eles alegam que, trabalhando, esses menores não estão pelas ruas cometendo atos ilícitos. O que é um absurdo. Já chegamos a flagrar crianças descalças, sem camisa, sem contar que os cavalos são animais pesados e imprevisíveis. O caso é muito preocupante e estamos tentando chamar a atenção dos órgãos competentes para que haja uma ação conjunta em combate ao trabalho infantil. Acredito que a Secretaria de Posturas do município já foi ao local, mas é preciso que essa fiscalização seja mais rigorosa para que a lei seja efetivamente cumprida”, alerta Evandro, que ainda reforça: "Assim que conseguirmos, efetivamente, ter acesso a essas crianças, iremos cuidar e promover a inclusão social delas para que não fiquem reféns desse tipo de conduta. A média de idade dos menores que fazem esse tipo de trabalho na Praça do Suspiro, por exemplo, é muito baixa. Entre 9 e 13 anos. Essas crianças precisam entender que nossa missão não é repreendê-los ou tirá-los da família. Pelo contrário, nossa intenção é realizar um acompanhamento não só delas e dos adolescentes, mas também de seus familiares para compreendermos porque eles estão nessas condições e, é claro, promover ajuda e zelar por aquelas que estão em situação de risco extremo”.


Zona rural e bairros afastados: índice maior

De acordo com o coordenador do Conselho Tutelar de Nova Friburgo, Evandro Arcanjo, não existem dados precisos sobre as denúncias de trabalho infantil no município, mas a maioria dos casos já encontrados se localizava na zona rural. "Talvez por conta da falta de informação, as denúncias sobre o trabalho de menores sejam poucas. Mas observamos um crescimento acentuado, principalmente na faixa etária de 12 a 16 anos, onde a família muitas vezes se utiliza desse trabalho para compor a renda familiar. Os bairros mais carentes e afastados são localidades em que o índice é ainda maior. Na zona rural do município, por exemplo, as crianças começam a lidar com o cultivo no campo ainda muito cedo, mas por uma questão de tradição o fato é considerado natural pela comunidade, já que assim como esses menores, muitos adultos começaram a rotina do trabalho ainda muito jovens”, relata o conselheiro, que também alerta: "Apesar de, em muitos casos, a família justificar que esses atos servem para o crescimento e maturidade dos filhos, as condições de trabalho a que muitos são expostos é muito perigosa. No campo, o perigo é outro: produtos químicos, exposição ao tempo, trabalhos pesados; é normal não haver nenhum acompanhamento ou cuidado no manuseio, o que acaba agravando ainda mais a situação”.

"Sempre que identificamos esse tipo de situação, verificamos a estrutura da família e acionamos a assistência social, e demais órgãos, que possam nos dar amparo não só a criança e adolescente como toda sua parentela. No caso dos adolescentes, promovemos a inclusão deles encaminhando-os  para cursos profissionalizantes e programas de jovem aprendiz. Nossa intenção é, de forma adequada,  incluir esses menores no mercado de trabalho sem interromper o seu desenvolvimento e sua vida escolar”, explica ele. 

 

Disque 100

Tendo como objetivo ao menos diminuir a imensa quantidade de casos de violações dos direitos humanos, foi criado o Disque 100. O serviço, que também atende denúncias de trabalho infantil, funciona 24 horas por dia, sete dias por semana, inclusive aos fins de semana e feriados. Através de discagem direta e gratuita, de qualquer terminal telefônico fixo ou móvel, as ligações podem ser feitas de todo o Brasil. As denúncias podem ser anônimas e o sigilo das informações é garantido, quando solicitado pelo demandante.



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TAGS: criança | trabalho infantil
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