O futebol, a fantasia e a tradição

quarta-feira, 11 de julho de 2012
por Jornal A Voz da Serra
O futebol, a fantasia e a tradição
O futebol, a fantasia e a tradição

Maurício Siaines

Finalmente a bola rolou, naquele sábado, 7 de julho, pouco depois das 9h, provocando alteração no ânimo da torcida, mudança esta perceptível pelos segundos de silêncio que se fizeram. Mas não era uma final de Libertadores, nem jogo de Campeonato Brasileiro, apenas uma primeira partida da série de treinos das crianças do Lumiar Futebol Clube. Nela, disputavam a bola atletas de 5 a 8 anos de idade e entre seus torcedores estavam pais, mães, irmãos e até um avô com 67 anos, usando chuteiras, tal como os outros craques. É que, antes de começar o jogo, quando os jogadores treinavam corrida com a bola dominada, driblando cones de plástico, ele, entusiasmado, batia bola a um canto do gramado com garotos mais velhos. Era Mauri Schuavb, antigo morador da região que já jogara “muita bola por aí”, especialmente em Boa Esperança, onde morava.

Aos poucos, a torcida começava a se manifestar. Mauri reclamava da defesa do time de seu neto João, que atuava como goleiro, adequadamente vestido e ostentando um escudo do Fluminense no peito. Esta é uma marca daqueles jogadores: quase todos usam algo que identifique seus times de fé por baixo dos coletes de treino, brancos ou pretos. Assim, camisas, calções e meiões do Vasco, do Flamengo, do Fluminense e do Botafogo revelavam a devoção íntima de cada participante; até uma camisa do Peñarol, do Uruguai. Como sinal dos tempos de globalização, algumas do Barcelona e da Inter de Milão.

No intervalo, o time de preto, do neto de Mauri, perdia por 3 a 2 e ele discutia com os jogadores, responsáveis pela defesa ficar desguarnecida, lembrando que “futebol tem que ser compacto”, confirmando o Corinthians, de São Paulo, como modelo quando se propôs a questão a ele. O time paulista conquistara sem derrota a Copa Libertadores da América, três dias antes, vencendo o Boca Juniors, de Buenos Aires por 2 a 0, no Estádio do Pacaembu.

A luta continua

A escolinha do Lumiar Futebol Clube, com seus mais de cem alunos divididos em várias categorias por faixas etárias, treina todo sábado, repetindo cenas como essas a afirmarem a importância do futebol na vida da comunidade local. Hoje, duas figuras têm uma importância destacada nesse trabalho, o presidente do clube, Adriano da Silva Viana, e o treinador Sebastião Heringer, conhecido como Tiãozinho. Ambos revelam em seus sobrenomes a lembrança dos primeiros moradores da localidade, luso-brasileiros e alemães, que, junto com os suíços, começaram a povoar o lugar no início do século XIX. A atuação de ambos a favor do futebol é resultado também de antiga tradição a se renovar a cada geração, mesmo com algumas referências alteradas.

Não há qualquer remuneração pelo trabalho dos dois, que ganham a vida em diferentes ofícios. O clube foi reorganizado em 2011, adequando-se às exigências do novo Código Civil e, antes e depois desta nova feição institucional imprescindível, Tião treina os meninos do mesmo modo. Também usa chuteiras e sempre uma camisa do Vasco a afirmar sua fé, tal como os alunos. Adriano se empenha em conseguir para o Lumiar Futebol Clube coisas como o exame médico para seus jovens atletas, necessário para a obtenção de financiamentos e patrocínios. Algo aparentemente simples torna-se uma grande luta para uma instituição que não tem um departamento médico nem dinheiro para contratar serviços de profissionais. Os coletes de treino, por exemplo, com marcas de patrocinadores, são lavados semanalmente por favores de familiares de Tião.

No jogo das crianças de 5 a 8 anos, apesar do vovô Mauri reclamar da pouca compactação da defesa de seu time, havia momentos em que os participantes se embolavam, vários ao mesmo tempo, com choques inevitáveis, no afã de controlar a bola. Quando algum jogador se machucava e ameaçava chorar, Tião tinha a sensibilidade de abraçá-lo e afagar-lhe a cabeça, reanimando-o a jogar, independentemente da camisa que usasse por baixo do colete.

Coisas do futebol

O campo do Lumiar Futebol Clube fica abaixo de uma elevação de terreno, sobre a qual estão erigidas duas igrejas católicas, uma ao lado da outra. Na menor e mais antiga, chamada de igreja-mãe pelos religiosos, casaram-se o imigrante libanês Júlio José Pedro e Alcebiadina Januária Boy, de Boa Esperança, em 15 de julho de 1911, ele com 22 anos e ela antes de completar 15. Cem anos depois, em 3 de maio de 2011, na igreja maior, ao lado, celebrava-se o ritual de despedida de um dos filhos do casal, Nagib Pedro, nascido em 1920, homem do futebol, como jogador e como dirigente, além de comerciante e ex-combatente na Segunda Guerra Mundial. Emoções ligadas à vida e à morte impregnaram as paredes dos dois prédios. Outros acontecimentos parecidos, como festas, casamentos, batizados, missas, ladainhas, velórios contribuíram para essa animização das construções. Se isto lhes deu alguma vida, o ser assim formado poderia dali observar a comunidade, como se estivesse a velar por ela. E esta é a fantasia que se pode fazer ao observar a antiga igreja sobre o campo de futebol. Esse espírito formado pelas emoções humanas manifestadas entre aquelas paredes, poderia ser, senão um protetor, uma testemunha dos acontecimentos locais e das mudanças vivenciadas.

Tal como um balé, o futebol é uma dramatização das coisas da vida, em que a dança não se faz para acompanhar a música, mas os movimentos da bola a ser dominada e conduzida ao gol adversário. Se em um Romeu e Julieta dançado em um palco representam-se amor, incompreensões, disputas de poder, traições, desejos, confusões, mal-entendidos, em um jogo de futebol acontece o mesmo, daí sua importância, análoga à do teatro. E a vida da comunidade de Lumiar vem sendo jogada com a bola há muitos anos.

Os modos de representar—tal como as religiões e as relações de parentesco—estruturam a vida social e, como poderia dizer o sociólogo Pierre Bourdieu, são capazes de estruturar justamente porque são estruturados. Pode-se dizer que também o futebol é estruturante exatamente por ser estruturado, com regras simples e inteligíveis por todos, e por penetrar na alma das pessoas. Estudiosos brasileiros, desde Gilberto Freyre até Roberto DaMatta, passando por inúmeros jornalistas, escritores e dramaturgos, têm tentado mostrar como o futebol cumpre esse papel de organizar a vida social no Brasil. DaMatta analisa como, no futebol, torna-se possível a superação das marcas de uma sociedade hierarquizada e injusta.

Histórias e história

Fundado em 30 de setembro de 1928, o Lumiar Futebol Clube—tal como inúmeras outras agremiações voltadas para o futebol, mesmo aquelas que se tornaram grandes—é um dos elementos a organizar a vida local, e reflete as diversas alterações da sociedade, mesmo aquelas de escala nacional. Ao final dos anos 1930, por exemplo, o time jogava de camisas vermelhas. Segundo Nagib Pedro, a escolha dessas camisas deveu-se a alguém—ele não revelava quem—de ideologia comunista. Manoel Antônio Spitz Sodré, historiador lumiarense e professor de história, acredita que essa pessoa seria seu pai, Manoel Sodré, participante do episódio de 1935 conhecido como Intentona Comunista, quando servia na Escola de Aviação do Exército.

Outra história relativa às camisas do time é contada também por Nagib. Pouco antes de ele assumir a liderança do clube, depois de voltar da guerra, seu tio, Jorge Pedro, foi incumbido de comprar um jogo de camisas tricolores para o clube, iguais às do Fluminense do Rio. A missão se realizou por meio de tropas de burros, que levavam um dia e meio para viajar de Lumiar ao centro de Nova Friburgo. A intenção era de que as camisas fossem compradas na Casa Knust. Chegando lá, Jorge inteirou-se do fato de não haver camisas do Fluminense disponíveis na loja e, para não perder a viagem, comprou um jogo de camisas do Botafogo. Assim, o Lumiar Futebol Clube tornou-se alvinegro, tal como é hoje definido em seu moderno estatuto.

Hercílio Fernandes da Costa, torcedor do Flamengo, de 81 anos, é morador de Lumiar, antigo músico da Euterpe Lumiarense. Foi jogador do Lumiar Futebol Clube durante 29 anos, tendo uma gestão como presidente. Orgulha-se por ser filho de ex-presidente da Euterpe Lumiarense, Manoel Fernandes da Costa, e por seu neto também já haver tocado na banda. Isto é, tem sentimento fortemente ligado às tradições locais, especialmente àquelas duas instituições. Ele diz que “o futebol era a maior atração e, dentro dele, a gente arranjava grandes amizades; tinha uns times daqui de perto e havia as rivalidades que sempre eram controladas, não davam brigas”.

Personagem muito lembrado por quem acompanha o futebol local foi Julinho, Júlio Delair da Costa. Jovem lavrador, notabilizou-se por ser zagueiro que ganhava a bola sem fazer falta, em jogadas de muita agilidade. Ele conta que tinha o hábito de cercar o adversário e, atento, esperar que ele fizesse o primeiro movimento para, então, agindo mais rápido, tomar-lhe a bola, o que quase sempre dava certo. Certa vez, em 1955 ou 1956, o já famoso goleiro Castilho, do Fluminense entre 1947 a 1964, e da Seleção Brasileira em quatro copas do mundo, de 1950 a 1962, foi trazido a Lumiar por Nagib Pedro, encantou-se com o futebol de Julinho e quis levá-lo para o Tricolor carioca. Julinho, então com 15 anos, condicionou sua ida para o Rio à aprovação dos pais, que não gostaram da ideia, temeram que ele viesse a “se perder”, na então capital da República.

O tempo passa e as coisas mudam: há dois anos, Ícaro Mafort da Costa, atualmente com 13 anos, sobrinho-neto de Julinho, teve suas qualidades de goleiro descobertas pelo mesmo Fluminense e a família não pensou duas vezes: o pai, o botafoguense Mário Antônio da Costa, mudou-se com o filho de Lumiar para Xerém, na Baixada Fluminense, onde todos os dias, das 15h às 17h, Ícaro exercita seu talento no centro de treinamento do clube. O futebol levou a uma reestruturação da família com base apenas na expectativa de Ícaro tornar-se jogador profissional de um time grande.

As histórias contadas são às vezes contraditórias. Afinal, a memória costuma pregar peças. Mas mesmo que algumas narrativas troquem os lugares dos fatos, elas correspondem a desejos compartilhados por algumas pessoas e por este motivo são significativas. Seja como for, o Lumiar Futebol Clube existe e ocupa lugar importante no passado e no presente da comunidade. No próximo 19 de agosto, um domingo, vai sediar a abertura da Copa Chico Faria de Futebol, além de disputar o torneio nas categorias infantis sub11 e sub13.

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